30 de novembro de 2007

Monóxido de Carbono

Não me bata na cara falando das possibilidades que eu ainda tenho, apesar de você. Só eu sei o dano que isso me fez, por ser tão exato. Exato como o fio fino como sintonia fina do estilete, como afinidade. Tão cínico, como sempre, o discurso do que ainda pode! Cínico e conveniente! Pois não pode! Não posso!

Não posso porque você foi uma antítese que surgiu apenas pra confirmar a tese, golpe consistindo em ataque e contra-ataque, na verdade um só movimento magistral da dor, dizendo "eu não sou o prólogo da felicidade". Um instrumento feito sob medida pra tirar de mim o que construí sobre o que não tive, pra faltar mais perfeitamente. E pensar que a tentativa de se negar ao que pode vir é apenas uma das primeiras etapas do processo de voltar ao mesmo. E por isso eu digo que não pode e aí talvez eu finalmente te entenda. Te entenda até você dizer, só agora, que pode, mas não era a hora. E pressentir nisso uma facada envenenada de não era eu. Você tinha razão. Fiquei com raiva disso.

A arte, você diz. Por que me sinto ludibriado? Tão belas coisas. Tão belas as coisas que eu posso vir a produzir elaborando mais essa. As pessoas me dizendo do quão lindamente eu soube afirmar com arte a inviabilidade da vida, enquanto vivem, outros detentos do planeta-prisão, a viabilidade de bem menos da metade do que devia ser. Você vai me admirar e respeitar. E eu vou me consolar com isso quando sozinho no quarto, sem saber o que fazer de mim, encontrando novas dores em palavras que você já esqueceu, sem saber o que fazer dela, me pedindo conversa comigo. Tão belas perdas pra compor minha personalidade interessante e encontrar pessoas tão interessantes pra se tornarem perdas ainda mais ricas. E produzir coisas ainda mais belas.

(...)

Por isso entenda: eu não escrevo pela arte, eu não desenho pela arte. Eu não ouço música só pela arte. Eu escrevo pra tentar registrar e transmitir a minha experiência, pra você entender, pra me fazer consciente e conscientizar. Eu escrevo pra alguém no mundo concreto e posso dizer sem vieses literários o seguinte: a arte que se foda. Como o padre Vieira, quero que olhem para a lua que aponto, não para o meu dedo. Eu não quero sublimar coisa alguma, não quero fazer terapia, quero romper com este jogo. Não quero elaborar a falta, nem yungueanamente me individuar, não quero crescer para perdas ainda maiores, para um dia rir disto e com o riso tirar o sentido de tudo, inclusive, sem o saber, do que então for, como quem quebra as paredes sem perceber que o chão também se foi.

(...)

Não quero sublimar, não quero crescer, embora crescendo e sublimando outras coisas tenha me tornado quem sou, quem se aproximou de você de uma forma tão específica. Porque crescendo e sublimando agora sou chamado a crescer e sublimar e começo a me perguntar se a arquitetura do inferno não segue um padrão espiral, centrado no vazio. E se eu cortar a espiral com uma reta, talvez veja que estamos no mesmo ponto, mas você num giro além. Você nasceu num giro além. Eu dizia que a vida humana era sem esperança, tirando esperança disso por te ver concordando – minha querida, minha única – concordando no ponto em que os outros se fariam peças de um sistema de clichês otimistas pra me aprisionar e se defender, esquecido tolamente de dar ouvidos ao que eu mesmo dizia: a vida humana é sem esperança. Esquecido tolamente também de que você concordava sem esperança com o que eu dizia. Bom, foi você quem disse que a identificação era mútua. Não quero sublimar, não quero crescer, porque crescendo e sublimando outras coisas foi que me tornei quem sou, quem perdeu você de uma forma tão específica.

(...)

De uma outra vez, casualmente, eu falei do cachorro que, sempre chutado, mordia agora, por ato reflexo, quem o afagava. "Metáforas" - você disse, sabendo que isso tinha endereço - "eu sei que você me odeia".

Verdade. Com toda a antimatéria do que poderia ter sido, do que foi. Com a qualidade única de cada tom das canções com que trilhamos o episódio, tornadas agora chaves sonoras para infernos muito particulares. Com um pavor religioso da repetição do roteiro imbecil do carinha que sofre e da menina que sempre diz vai ser melhor assim. Com a sensação de estar de volta a uma Belo Horizonte onde já andei a esmo, fazendo perguntas raivosas e tardias, em silêncio. Com a náusea da consciência de existir. Com a perplexidade de um feto um segundo antes do aborto. Com orgulho ferido. Com insegurança. Com saudade. Com amor.

(...)

Não me peça pra voltarmos a ser o que nunca fomos. A outros você dirá que tivemos uma história muito complicada, mas que hoje eu já tenho isto mais bem resolvido. Coitado. Pastou. E eles te ouvirão, quem sabe pensando que são, eles mesmos, novidades na sua vida.

Quanta raiva em pensar que posso impulsivamente aparecer na sua casa, quando algo me diz que eu deveria me negar a um papel menor e sabotar o sistema que te dá força para nos impossibilitar enquanto mais que amigos e imaginar que você vai me abraçar e perceber os meus tremores e se solidarizar com o momento que estou passando e dizer a si mesma eu o quero bem espero que supere isto logo. Quanta raiva em pensar que em não conseguindo me afastar sou parte do oxigênio eventual que te ajuda a permanecer dentro da cúpula que te afasta. E que afastado sou monóxido de carbono para os meus próprios pulmões.

Não me diga que sou viável ainda, com outra. Não faça isso. Não me mostre o quanto é fácil pra você, porque não te creio altruísta o bastante pra me desejar bem em outra parte sem que isto signifique que na verdade não te faço o tipo de falta que eu queria fazer.

(...)

Não quero me individuar, querida. Não quero sublimar ou faltar. Não quero evoluir. Quero te beijar e dizer nem as trevas podem vencer sempre. Nem as minhas, talvez nem mesmo as suas.


(2005)

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